
A sociedade brasileira viu, ao longo de muitos anos, os evangélicos protagonizarem uma redefinição do religioso e parece que tornou-se um caminho sem volta. Agora, em 2020, os evangélicos já representam quase 30% da população brasileira, há uma grande cultura pública dos evangélicos, a ideia de que as igrejas evangélicas só fazem bem ao país está amplamente disseminada, e no horizonte não há nenhum movimento no sentido de fiscalizar as atividades das igrejas evangélicas, de fiscalizar as movimentações financeiras das igrejas, de fiscalizar os amplos repasses de dinheiro para empresas, de restringir a atuação das igrejas nos meios de comunicação, de restringir a atuação de líderes evangélicos na política e de impedir que partidos políticos sejam controlados por igrejas evangélicas.
No início deste ano, o jornalista Raphael Tsavkko Garcia me perguntou se o Brasil caminha para uma teocracia evangélica. Não sei se caminhamos para uma teocracia, mas está claro que os evangélicos no Brasil têm desempenhado um papel muito prejudicial ao jogo democrático. A discussão sobre a liberdade religiosa está hegemonizada, ninguém quer mexer com as grandes igrejas evangélicas, ninguém quer mexer no estatuto jurídico das igrejas, o Ministério Público é simplesmente omisso, e os líderes evangélicos mais moderados têm medo de discutir efetivamente esta questão. A liberdade religiosa tem sido utilizada como uma desculpa para os evangélicos estimularem ataques contra minorias com seus discursos públicos (ataques misóginos, homofóbicos, xenófobos, racistas e de intolerância religiosa). E olhando ao cenário atual de campanhas eleitorais com menos recursos financeiros, com o enfraquecimento dos partidos e dos sindicatos, com menos debates públicos, as igrejas evangélicas representam uma força política muito mais relevante e constituem os principais currais eleitorais.
Para que ninguém diga que estou exagerando sobre o posicionamento dos líderes evangélicos mais moderados, ligados principalmente às igrejas evangélicas históricas, vejam o que disse, em 2014, um parlamentar evangélico aqui da cidade de São Paulo (Brasil) que pode ser considerado um líder evangélico moderado:
“Sou contra qualquer iniciativa que queira cercear nosso direito de expressar a fé em Jesus ou queira calar nossa voz profética nessa nação, sou contra tentativas de rebaixamento moral da família e de desvalorização da vida, sou contra projetos que queiram obrigar pastores a fazer coisas que contrariem nossa fé, o Estado tem de saber que as igrejas têm suas próprias regras. Eu estou atento e vigilante. Se algo assim ameaçar avançar em São Paulo, levantarei minha voz e agirei para impedir.” Esta defesa irrestrita da liberdade religiosa considera que quaisquer discursos proferidos a partir dos púlpitos evangélicos são totalmente aceitáveis, porque são considerados simplesmente “expressões da fé em Jesus”.
Mas o que dizer quando estes discursos evangélicos se colocam frontalmente contra a saúde pública? O que dizer quando os discursos evangélicos colocam em risco a saúde de toda a população?
O fato é que diversos discursos evangélicos vão contra a saúde pública. Isto é ainda mais problemático quando estes discursos são muito difundidos no contexto brasileiro em que grande parte da população não tem acesso aos serviços públicos de saúde (de atenção primária) e de saneamento básico. Pode-se citar os discursos sugerindo que atendimentos espirituais das igrejas podem substituir serviços médicos; os discursos que promovem a ideia de que a abstinência sexual defendida pelos evangélicos trata-se de método eficaz para prevenir doenças sexualmente transmissíveis e gravidez precoce; os discursos contrários à educação sexual voltada para adolescentes e jovens; os discursos contrários à distribuição de preservativos; os discursos contrários à vacinação de adolescentes para prevenção de infecções do HPV. Há grupos evangélicos que, seguindo estes discursos, organizam campanhas contra materiais didáticos, contra planos educacionais, contra cartilhas e campanhas do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, entre outras.
A ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), é uma liderança evangélica que tem atuado no sentido de atender essas demandas evangélicas em termos de políticas públicas que, por sua vez, são muito questionáveis. Por exemplo, ela tem levado adiante uma campanha moralista de abstinência sexual para prevenir gravidez precoce. Trata-se de campanha governamental que conta com dinheiro público do Ministério da Saúde, mesmo não apresentando estudos científicos sobre sua eficácia.
Em tempos de pandemia da Covid-19, os líderes evangélicos de grandes igrejas pentecostais (Silas Malafaia, José Wellington Jr, Edir Macedo, Valdemiro Santiago, R.R. Soares, Estevam Hernandes, entre outros) continuam adotando posições extremamente irresponsáveis em relação à saúde pública. Nesta última semana, alguns discursos foram proferidos por estes líderes: (a) discurso de que a Covid-19 é só mais um vírus e que a pandemia envolve interesses econômicos; (b) discurso de que a Covid-19 é só uma estratégia de Satanás e da mídia para induzir as pessoas ao pânico; (c) discurso de que a Covid-19 só atinge quem não tem fé; (d) discurso de que igrejas não podem fechar suas portas e cancelar reuniões presenciais; (e) discurso com críticas diretamente voltadas às recomendações do Ministério da Saúde e das secretarias de saúde; (f) discurso de que uma grande contribuição financeira ou “oferta de sacrifício” pode evitar a Covid-19. Cabe mencionar também a nota irresponsável emitida pela Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional pedindo a reabertura dos templos evangélicos para enfrentar a “pandemia maligna”.
Diversos líderes evangélicos se posicionaram contra a abertura dos templos e contra qualquer tipo de oportunismo e irresponsabilidade diante da pandemia. No entanto, estes líderes evangélicos que defendem um posicionamento responsável em relação à saúde pública são minoritários no meio evangélico e, ao que tudo indica, continuam cautelosos e omissos em relação às discussões sobre a liberdade religiosa. Por quê? Será que faz sentido defender um posicionamento responsável em relação à saúde pública, ser um líder evangélico considerado mais moderado, e ao mesmo tempo defender, direta ou indiretamente, uma concepção de liberdade religiosa irrestrita que abre a possibilidade para que todo tipo de demagogia e oportunismo irresponsável esteja amplamente presente no meio evangélico?
[Este artigo foi publicado originalmente no jornal A Pátria, Funchal, 23/3/2020.]
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Silas Fiorotti é membro do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária e coordenador do projeto Diversidade Religiosa em Sala de Aula. Email: <silas.fiorotti@gmail.com>.
Referências:
Bezerra Jr., C.; Cavallera, R., Em entrevista exclusiva, deputado pastor Carlos Bezerra crava: “O Estado tem de saber que as igrejas têm suas próprias regras”. In: Gospel Mais, Curitiba, 25/11/2014.
Maciel, A.; Dip, A.; Ribeiro, R., Megaigrejas continuam abertas e dizem que fé cura coronavírus. In: A Pública, São Paulo, 19/3/2020.
Tsavkko-Garcia, R., Is Brazil Becoming an Evangelical Theocracy? In: Sojourners, Washington DC, 02/1/2020.
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O Coletivo por uma Espiritualidade Libertária lançou o informativo Diálogos & Espiritualidade que aborda a questão da intolerância religiosa. Esta publicação está no âmbito das atividades da Campanha Contra a Intolerância Religiosa e do projeto Diversidade Religiosa em Sala de Aula. Para saber mais sobre estas atividades, leia os textos “É preciso dizer não à intolerância religiosa no Brasil”, “Por que falar de religião em sala de aula?”, e “É preciso combater a intolerância religiosa na educação básica”.
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