Como é de conhecimento de muitos, no dia 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero pregou as chamadas 95 Teses em uma Igreja na Alemanha (Sacro Império, na época). Essas teses eram essencialmente críticas às práticas corruptas presentes no Catolicismo Romano. O dia que ele fez isso não teve grande destaque, mas, mesmo sem saber, ele deu início a um movimento que, também por razões políticas, culturais e econômicas, abalou a sociedade europeia. Em pouco tempo, as críticas luteranas se estenderam das práticas às doutrinas católicas.
Hoje é comum os protestantes afirmarem retoricamente que “é preciso uma nova Reforma na igreja”, e é por isso que escrevo esse texto. Qual foi a consequência da Reforma? Foi a proliferação de diversas igrejas e teologias que receberam o nome de protestantes. A proposta luterana não era essa, pois, a princípio, ele acreditava que era possível manter uma unidade institucional e teológica na cristandade ocidental. O que devemos questionar é: em algum momento da história do cristianismo já houve essa pretensa unidade? Não, isso nunca existiu, nem mesmo na religião que deu origem ao cristianismo – a saber, o judaísmo.
Entre os antigos hebreus sempre houve uma diversidade de correntes, sendo que um grupo ortodoxo acusava os demais de seguirem “falsos profetas”. O início do cristianismo também é marcado por essa diversidade, tanto no período neotestamentário, quando outros grupos pregavam o Cristo sem a conivência dos apóstolos, quanto na(s) igreja(s) primitiva(s). A própria diversidade cristã fez com que fosse necessário realizar diversos Concílios Ecumênicos para a definição de quais seriam as doutrinas tidas por ortodoxas. Os segmentos rejeitados (“heréticos”) continuaram a existir, ainda que perseguidos. Em toda a Idade Média, ainda que a Igreja Católica Romana tenha se tornado a instituição oficial cristã, sempre houve várias correntes de cristãos que se opunham à ortodoxia ou ortopraxia romanas, sendo que alguns foram perseguidos (como os valdenses) e outros foram cooptados pela instituição (como os franciscanos).
Essas pessoas que hoje afirmam que “precisamos de uma nova Reforma”, na prática, ignoram que o cristianismo sempre foi uma religião multifacetada. Essas pessoas podem, com legitimidade, fazer críticas às suas denominações, apontando para os possíveis desvios doutrinários em suas ortodoxias. Mas querer afirmar uma única ortodoxia para todos os cristãos e almejar uma unidade entre todos os cristãos, ou mesmo retornar a uma suposta “unidade que se perdeu” no mundo atual, é fruto de um pensamento que idealiza o passado e não o entende em suas complexidades, contradições e conflitos. Nunca houve harmonia teológica entre os cristãos. A “conquista” católica foi de uma “harmonia institucional”, que na prática nada mais era do que um “silêncio dos hereges” (vivos ou mortos). Aí é que entra o “paradoxo das consequências” da Reforma Luterana: um movimento que defendia uma unidade, um “retorno à forma original” do cristianismo, serviu para evidenciar a pluralidade cristã, gerando cisões atrás de cisões, o que resultou na emergência de tantas instituições cristãs.
Isso é ruim? Só se você acredita que já houve uma unidade, se você idealiza uma certa visão do passado. Para além disso, a Reforma trouxe algo de muito positivo: o princípio da crítica! Só Deus é absoluto, e todo o resto pode e deve ser criticado. Toda pretensão absoluta, seja do papa, do rei, do Estado, de igrejas, pastores, líderes, etc, todos devem ser questionados. A fé protestante deve ser um posicionamento afirmativo do que cremos e vivemos, e negativo frente a toda pretensão absoluta que tente tomar o lugar de Deus. A própria Bíblia, enquanto regra de fé e prática, passa a a ser estudada com critérios exegéticos e históricos, rejeitando as constantes alegorias arbitrárias das leituras bíblicas típicas do medievo. Eis a nossa herança.
Celebrar o corajoso ato de Lutero é reconhecer a diversidade cristã, e ao mesmo tempo não aceitar tudo o que se diz cristão sem antes o expor ao fogo da crítica. Devemos, por fim, abrir mão dessa nostalgia do que não existiu, dessa pretensão totalitária dos que querem impor uma unidade à Teologia Cristã, e estabelecer a crítica constante a tudo o que é humano e que pretenda tomar o lugar de Deus. Criticar não é apenas rejeitar, e sim também aceitar após uma reflexão criteriosa. Manter a Reforma viva não é propor uma nova Reforma, e sim manter vivo o princípio da crítica, que é o combate a toda idolatria! Que Deus nos abençoe nessa tarefa!
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Flávio Macedo Pinheiro é bacharel em História, Filosofia e Teologia, e reside na cidade de São Paulo. E-mail: flavimp@yahoo.com.br.