É preciso dizer não à intolerância religiosa no Brasil (por Amauri Alves e Silas Fiorotti) – 27/1/2014

Vivemos no Brasil, considerado por muitos um país com liberdade religiosa consolidada em que diferentes grupos religiosos convivem pacificamente. No entanto, as coisas não são bem assim.

A história do Brasil nos mostra que praticantes de religiosidades de origem africana e afro-brasileira foram perseguidos nas visitações ao território brasileiro do Tribunal da Santa Inquisição (séculos XVII e XVIII). Na Constituição do Império, de 1824, o catolicismo é instituído como religião oficial e os templos não-católicos são proibidos, outras religiões ficam restritas aos espaços domésticos ou sem aparência de templo. Somente em 1891, com a Constituição Republicana, são instituídas a separação entre Estado e Igreja e a liberdade de culto. Contudo, tanto no Código Penal de 1890 como no de 1940, são mantidos os delitos de charlatanismo e curandeirismo pelos quais praticantes das religiões afro-brasileiras eram acusados.

Hoje, em 2014, ainda presenciamos tentativas de desqualificação da cultura afro-brasileira e das religiões afro-brasileiras. Há uma resistência em colocar em prática a lei 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas. E mesmo quando esta lei é colocada em prática, as religiões afro-brasileiras raramente são mencionadas por conta da oposição de alguns grupos religiosos, especialmente dos evangélicos. Alguns estudantes evangélicos recusaram-se a ler até mesmo obras clássicas da literatura brasileira, como Macunaíma de Mário de Andrade, por conta da religião. Além da baixa qualidade do nosso ensino básico, estes acontecimentos são decorrentes de uma cultura de guerra religiosa.

Constata-se, nas últimas décadas, um acirramento dos ataques de grupos evangélicos contra as religiões afro-brasileiras e seus adeptos (ver livro Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro organizado por Vagner Gonçalves da Silva e publicado pela Editora da USP em 2007). Poucos ataques são efetivamente combatidos e denunciados como casos de intolerância religiosa. Estes ataques são incentivados e feitos no âmbito dos cultos, na literatura de guerra ou batalha espiritual e outros meios de divulgação. Foram noticiados alguns casos de agressões físicas contra adeptos das religiões afro-brasileiras; ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras em locais públicos e aos símbolos dessas religiões; e ataques aos símbolos da herança africana no Brasil.

Mãe Gilda (Gildásia dos Santos e Santos), do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, é um símbolo da luta contra a intolerância religiosa. Em 2000, ela faleceu de um infarto fulminante em consequência dos ataques sofridos por grupos evangélicos. Além de ter sua imagem usada indevidamente por uma igreja, teve seu terreiro invadido por um grupo de evangélicos dispostos a “exorcizá-la”. Este caso levou a Câmara Municipal de Salvador a transformar a data de seu falecimento (21/1/2000) em Dia Municipal de Combate à Intolerância Religiosa, em 2004. Posteriormente, em 2007, o mesmo dia tornou-se também o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.

Mas o que o cidadão comum pode fazer diante de tais demonstrações de intolerância? Assim como em outros casos de violência e intolerância, o ideal é não se calar. É importante que os casos de intolerância religiosa sejam denunciados. O Disque 100, número da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, pode ser usado para denunciar casos de intolerância religiosa. Nenhum cidadão deve ser constrangido por causa de sua crença ou ausência dela. Nenhum cidadão deve sofrer qualquer tipo de ameaça ou perseguição ao abandonar uma religião ou crença. Por outro lado, nenhum cidadão tem o direito de vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Os religiosos e não-religiosos devem ser respeitados em suas crenças ou descrenças. Os templos e outros locais de culto devem ser respeitados. Os símbolos religiosos em locais públicos devem ser respeitados. As cerimônias religiosas e festas religiosas em locais públicos devem ser respeitadas. Denunciem qualquer tipo de intolerância religiosa.

Destacamos as ações de diversos grupos e organizações por todo o Brasil contra a intolerância religiosa: o Movimento Contra a Intolerância Religiosa da Bahia, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) do Rio de Janeiro, a Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço, o Instituto da Tradição e Cultura Afro-brasileira (INTECAB), a Comissão de Assuntos Religiosos Afrodescendentes de São Paulo, o Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, a União das Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, a Comissão de Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (CDRAB) do Rio Grande do Sul, a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), a Rede Ecumênica da Juventude (REJU), o Fórum do Diálogo Religioso de São Bernardo do Campo, a Associação Brasileira de Apoio a Vítimas de Preconceito Religioso (ABRAVIPRE), o Comitê Interreligioso do Estado do Pará (COMITER), a Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania (ABLIRC), a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa (OAB/SP), entre outros. Diversos religiosos e não-religiosos estão unidos no combate à intolerância religiosa no Brasil, mostrando que a convivência pacífica e respeitosa entre distintas crenças e descrenças é possível.

Nós do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária nos juntamos a esta empreitada contra a intolerância religiosa.

Neste mês de janeiro de 2014, realizamos nossa primeira Campanha Contra a Intolerância Religiosa. Nos dois fins de semana que antecederam o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, realizamos uma ação que consistia em tirar fotos nas ruas da cidade de São Paulo de pessoas que estivessem dispostas a nos apoiar carregando cartazes de apoio e respeito às diversas religiões. Também pedimos, através de nossa página no Facebook, que as pessoas enviassem suas fotos com frases que demonstrassem seu respeito à diversidade religiosa.

Nas ruas, diversas pessoas se dispuseram a participar cedendo sua imagem. Contudo, observamos que muitas pessoas não entendiam bem o sentido do respeito e da tolerância à religião alheia. Algumas pessoas, quando indagadas a qual religião pertenciam, diziam pertencer à mesma religião à qual estavam prestando respeito através da escolha do cartaz. Os cartazes de respeito a religiões, cultos, símbolos e adeptos das religiões afro-brasileiras não chamavam tanta atenção, ou não eram tão bem recebidos pelo público de forma geral. Os cartazes de respeito a festas e símbolos religiosos eram melhor aceitos.

A campanha também serviu para mostrar que as concepções de “tolerância” e “respeito” ainda são um tanto incompreendidas, ou não são levadas às últimas consequências. Até mesmo afirmar que respeita-se os adeptos de uma outra religião pode ser interpretado como algo comprometedor para a sua própria crença ou padrão ético. Por isso, alguns afirmaram que respeitavam com ressalvas. De qualquer forma , esperamos que esta campanha tenha sensibilizado diversas pessoas no sentido de eliminar um pouco mais a intolerância religiosa presente no Brasil, seja mostrando que as religiões podem e devem dialogar, seja mostrando que a tolerância e o respeito nunca são demais, e que sempre podemos respeitar mais, tolerar mais, amar mais, mesmo sem perder a nossa identidade religiosa.

* Amauri Alves é redator e tradutor, bacharel em Letras, e membro do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária.
** Silas Fiorotti é cientista social, mestre em Ciências da Religião, doutorando em Antropologia Social, e membro do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária.

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(foto de Amauri Alves – SP, 18/1/2014)