Gioacchino da Fiore (1130-1202) , abade cisterciense e filósofo místico, acreditava em três idades da história, e elas se modelavam de acordo com a Trindade. A primeira idade seria o período em que vivíamos sob a lei, caracterizado pela escravidão e temor, pertencente ao Pai. O segundo período seria o vivemos, a graça, caracterizado pela fé e uma servidão filial, pertencente ao Filho. O terceiro e último estado seria o qual viveremos em um estado de graça mais que perfeita, caracterizado pela liberdade e caridade, que seria o tempo do Espírito. (Vattimo, 2004, p. 43). A leitura bíblica do Espírito é marcada pela caridade e sensibilidade, não mais pela literalidade do texto. É a era marcada pela contemplação e não mais pela “autoridade da letra”.
Vejo que há um movimento de religiosas e religiosos que tem buscado a leitura do Espírito, entretanto, como sempre, estão sofrendo perseguições das próprias comunidades de fé. A liberdade proporcionada pelo Espírito incomoda aqueles que estão apegados a doutrinas e fundamentos sem sentido, eles não suportam a liberdade! E por isso há também um movimento contra a leitura do Espírito: são os idólatras.
Os ditos “defensores da ortodoxia” idolatram a Bíblia. Essa passa a ser o seu Deus, a quem prestam adoração e sacrifícios. Perseguem aqueles e aquelas que tem uma outra hermenêutica, senão aquela da “literalidade”. Dizem que estes não devem ser considerados cristãos, que devem ser banidos de suas convenções eclesiásticas, que estão profanando a fé. Quando, na realidade, aqueles que idolatram a Bíblia são os que estão adorando outros deuses, profanando o Espírito e a Vida, impondo uma só maneira de leitura e a colocando como centro da fé cristã. “Quando deslocamos Cristo do centro, substituindo-o pela Bíblia, perdemos a essência da fé e caímos em idolatria (substituindo o sentido pelo significado).” (Neto, 2016)
Para o filósofo e poeta alemão Novalis “não há nada como a letra para anular a sensibilidade (religiosa)” (1995, pp. 25-26). Isso ressoa nas palavras do próprio Jesus “Vocês estudam cuidadosamente as Escrituras, porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as Escrituras que testemunham a meu respeito; contudo, vocês não querem vir a mim para terem vida.” (Jo 5:39,40). Foca-se da Palavra e esquece de quem profere a Palavra. Anula-se a sensibilidade, e assim, o Espírito morre. Como bem disse Feuerbach que nesses dias “a verdade é considerada profana e somente a ilusão é sagrada.”
“A religião não é marcada profundamente por sistemas teológicos, mas por poesias, contos, canções e rituais” (Neto, 2016). O filósofo Gianni Vattimo acredita, assim como Fiore, na hermenêutica da caridade e, como Novalis, na sensibilidade da fé, que é justamente a poesia e beleza da religião. E a partir dessas duas características de interpretação, a Bíblia se torna a libertação de muitas minorias oprimidas pela própria Bíblia. Deve haver uma conscientização geral de que “a única coisa que conta é a caridade; de fato, somente a caridade constituiu o limite e o critério da interpretação espiritual da Escritura” (Vattimo, 2004, p. 66).
Em uma entrevista o teólogo Walter Brueggemann foi indagado sobre o movimento LGBTQ e disse: “Eu sei que esses textos estão na Bíblia, mas a Bíblia é uma tradição dinâmica que está sempre em movimento para uma nova verdade”. A contra-reposta foi que muitos temem em desobedecer a Bíblia quando o assunto é esse, e sua resposta não poderia ser mais lúcida: “Não é uma questão de obedecer a Bíblia – é sobre obedecer o Evangelho. O Evangelho é sobre o amor salvífico de Deus que quer restaurar toda a humanidade à plena comunhão. Para voltar a um texto antigo que já foi corrigido pela revelação de Deus em Jesus Cristo é simplesmente uma péssima manobra e uma pobre metodologia e uma irresponsabilidade teológica. Esses textos não são determinantes. Os textos que são determinantes são aqueles que falam sobre o amor de Deus que tem sido mostrado para nós em Jesus. E não podemos comprometer isso.” (2015)
Quando não se tem uma leitura de caridade das Escrituras Sagradas o próprio evangelho fica comprometido. O Reverendo Luiz Carlos Ramos, em um dos seus belíssimos textos, diz que existem duas maneiras de ler as Escrituras Sagradas. A primeira seria lermos a letra morta, e daí surgiria o legalismo, fundamentalismo, inquisidores e terroristas. A segunda maneira seria optarmos pela mediação do espírito que vivifica, relendo o texto e o que transcende a própria letra, que é a “força geradora de viva, dinâmica, que se atualiza e se encarna em cada nova geração.”
Os idólatras da Bíblia se tornaram os fariseus dos tempos bíblicos. Não enxergam a dinâmica do Espírito, a dinâmica da fé, pois só leem a letra morta. Por terem medo de perderem a própria “identidade cristã”, oprimem o diferente, tentam moldar a todos para se tornarem iguais, pois assim, sem a divergência de opiniões, sua fé se torna imutável. Os fundamentalistas não compreendem o básico, que “a Bíblia revela a busca humana pelo Sagrado e, por isso, apresenta várias ideias sobre Deus. A Bíblia é plural, não é unívoca” (Neto, 2016). E apresenta também várias interpretações do texto, o que é excelente para a reflexão e ação prática nos dias de hoje.. “O espírito sopra na direção que deseja, o seu é o reino da liberdade e fixar-lhe limites conclusivos seria um modo indevido de restringi-lo” (Vattimo, 2004, p. 45).
Lembro da resposta do meu tio José Thomaz Filho, teólogo e poeta católico, quando fui demitida do colégio que fui contratada por “não ter vivência da fé católica”, citando Marcos 9,38-41 comenta:
“[…] As instituições têm o grande problema de querer controlar Deus, de querer encaixotá-lo. Mas Deus não é encaixotável! […]
Nessa passagem de Marcos vemos que aquele que rejeita acha-se o dono da verdade, e acha que o outro é um atrevido, inoportuno, um atropelador, um herege, um lobo em pele de cordeiro que precisa ser calado, rechaçado. Esquece-se de que a Verdade é Jesus, e não tem dono. Esquece-se de que Ele olha o coração e não a aparência. Esquece-se de que a questão não é mais de adorar a Deus no monte da Samaria ou em Jerusalém (Jo 4,20-24), mas em espírito e verdade.
O processo é sempre esse: primeiro me convenço, não importa por qual razão, de que o outro é diferente, e convenço-me sem ouvi-lo, sem dar-lhe a chance de se revelar; depois coloco-lhe o rótulo de diferente, que leio como inimigo e intolerável, e contra o próprio Deus; e posso, então, eliminá-lo. […] Como Jesus continua não compreendido!… Não sendo respeitado! Sendo perseguido! Sendo crucificado!”
Jesus é crucificado a cada palavra de opressão,a cada violência simbólica, ironia, calúnia contra aos que leem a Bíblia na perspectiva do Espírito. Aos que sofrem a perseguição dos legalistas e idólatras da Bíblia: Espero que a violência do discurso não os atinja e desanime. E que se lembrem que a única intolerância que devemos ter é aquela que vai de encontro com a de Cristo. Intolerância dos idólatras da Bíblia, dos “peritos na Lei”. Como diz o São Brabo no seu texto “Primeiro passo: Viva a intolerância contra os religiosos”:
“O alvo da nossa intolerância deve ser outro, o alvo que foi também o de Jesus: os que passeiam pelo mundo crendo ter o aval inequívoco e a credencial indelével do Verdadeiro Deus©. Aqueles que, nas palavras de Paulo, estão “persuadidos de serem guias dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutores de ignorantes, mestres de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade” – mas que “ensinam os outros sem ensinarem a si mesmos” (2006).
Assim como Gioacchino da Fiore “profetizou” séculos atrás a respeito da história da salvação, que a Escritura realmente sofra uma transformação “espiritualizante”. Que a revelação bíblica seja além do “seguir literalmente” as Escrituras, mas que adquira um sentido pleno para ser aplicado à nossa realidade. Como bem disse Vattimo “não mais o texto e sim o espírito da revelação; não mais servos e sim amigos; não mais o temor ou a fé e sim a caridade; e, talvez, também não mais a ação e sim a contemplação.” (2004, p. 45)
“De uma coisa eu desconfio com força: Toda religião nasce como poesia e morre como dogma. Dogma é letra morta. Poesia é vida pura. Mas quem lê poesia como quem lê bula de remédio fica doente.
Se bem me lembro, Jesus preferia as parábolas. Jeito atravessado de fazer teologia: converter a vida em poesia e devolver a poesia pra vida.”
Reverendo Luiz Carlos Ramos
Bibliografia
Brabo, Paulo. “Primeiro passo: Viva a intolerância contra os religiosos”, 2006. Disponível em: <www.baciadasalmas.com/1-viva-a-intolerancia>. Acesso em: 22 de julho de 2016.
Brueggemann, Walter. “It’s Not a Matter of Obeying the Bible”: 8 Questions for Walter Brueggemann”, 2015. Disponível em : <www.faithstreet.com/onfaith/2015/01/09/walter-brueggemann-church-gospel-bible/35739>. Acesso em: 21 de julho de 2016.
Neto, Adair. “Como ler a Bíblia?” 2016. Disponível em: <furoa.wordpress.com/2016/07/09/como-ler-a-biblia>. Acesso em: 19 de jullho de 2016.
_____. “Heresias mal redigidas”, 2016. Disponível em: <furoa.wordpress.com/2016/07/25/heresias-mal-redigidas>. Acesso em: 25 de julho de 2016.
Ramos, L. C. “Jeito atravessado de fazer teologia”, 2016. Disponível em <www.luizcarlosramos.net/jeito-atravessado-de-fazer-teologia>. Acesso em: 21 de julho de 2016.
Vattimo, Gianni. Depois da cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004.
* Angelica Tostes é teóloga, membro do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária, e articuladora da Rede Fale SP. E-mail: angelicatostes@gmail.com.
Fonte: <angeliquisses.wordpress.com/2016/07/22/a-idolatria-da-biblia>.