Teologia é discurso. E discursos são eventos da linguagem. São “dis-cursos, isto é, um desvio do curso” (JOSGRILBERG, 2012, p.42). O estudo dos “desvios do curso” na teologia é mais que necessário, pois a linguagem religiosa tem um poder fortíssimo na sociedade. Um dos primeiros passos para esse estudo é repensar nossa hermenêutica bíblica e dar visibilidade as diversas vozes da Escritura Sagrada cristã.
As instituições religiosas cristãs, em sua lamentavelmente maioria, produzem um discurso violento. Discursos que não promovem a paz, mas que instigam a guerra. Um discurso de ódio contra tudo e todos aqueles que são “diferentes” da sua normalidade imposta. A religião oficial tem a constante tarefa de “evitar e apagar a polissemia religiosa representada, nesse caso, pelos movimentos não conformistas” (RIVERA, 2015, p. 289). Criticam as diversas teologias, como a teologia negra, teologia feminista, teologia da libertação, teologia gay, teologia das religiões. “A existência de um único discurso, negando a polifonia, é, por definição violência; esta é justamente o silenciamento de outras interpretações/discursos a respeito da realidade.” (NETO, Adair)
A violência simbólica e discursiva é tão nociva quanto a violência física, pois é ela que alimenta até o ponto de se tornar algo físico. Basta lembrar cada caso de violência física e crimes advindo desses discursos:
Os discursos que as mulheres são inferiores aos homens ; que a mulher é apenas a ajudadora, pobre coitada, que é o pescoço ; que o ministério delas é o lar, filhos e marido ; que a mulher deve tomar cuidado com as roupas e corpo ; que ela não deve ensinar na igreja e seminários ; que a mulher deve cuidar do marido, que se é traída é porque ela não cuidou direito ; que a pior coisa do mundo é ser mulher divorciada ; que não se pode nem pensar na palavra sexo e muito menos na palavra aborto: isso é teologia da violência
Os discursos que os homossexuais precisam de cura ; que tem demônios no corpo ; que são aberrações ; que isso é anti-natural ; que eles merecem o “inferno” ; as orações forçadas, as falsas profecias, as culpas impostas: isso é teologia da violência
Os discursos que os negros são amaldiçoados ; os discursos que não colocam o racismo estrutural no púlpito ; a omissão do discurso sobre os jovens negros que são mortos dia após dia na periferia ; a invisibilização da luta da mulher cristã negra, os discursos que demonizam a religião e cultura afro, “o discurso que impede negros cristãos de pensarem sua fé a partir dos referênciais de sua própria cultura e espiritualidade milenares” (ROCHA, Felipe): isso é teologia da violência
Os discursos que os pobres são pobres porque Deus quis assim ; que são pobres porque não trabalham direito ; que só não é pobre quem dá dizimo ; que Deus predestinou para ser pobre ou rico ; que a pobreza é sinônimo de pecado, pois a prosperidade é ter dinheiro ; os discursos que menosprezam o pobre, ridicularizam os programas do governo ou propostas políticas em direção aos pobres: isso é teologia da violência.
Os discursos que discriminam as diversas formas de crença ; que apenas o cristão é que tem o Deus verdadeiro ; que as imagens são ídolos ; que todas as outras religiões são enganações de Satanás e só o cristianismo é santo ; que tem que repreender os espíritos das outras religiões ; que não se deve aceitar comidas de outras religiões, pois pode estar consagrada a outros deuses: isso é teologia da violência.
Imagem-discurso de-sobre Deus
Teologia é discurso sobre Deus. Mas quem é esse Deus de que tanto se fala? Qual é a imagem dele? Nós somos a imagem e semelhança de Deus ou Deus é a nossa imagem e semelhança? É esse “Deus” que promove ódio e violência que existe? Para o filósofo Jack Caputo,
“Na religião, o amor de Deus está exposto habitualmente ao perigo de confundir-se com a profissão de alguém ou o ego de alguém, ou o gênero de alguém, ou a política de alguém, ou a ética de alguém, ou o esquema metafísico favorito de alguém, ao qual este se sacrifica de maneira sistemática. Então, ao invés de fazer sacrifícios pelo amor de Deus, a religião se inclina a fazer um sacrifício do amor de Deus” (Caputo, 2005: 121, tradução Jonathan Menezes).
Sempre projetamos nossas aspirações nesse Sagrado. E assim o discurso oficial da grande parte das igrejas massacra a diversidade por uma questão antropomórfica de Deus: homem, branco, velho, hétero, rico. E além da leitura bíblia feita com essa imagem de Deus, é necessário relembrar que o a Bíblia é um testemunho das comunidades de fé a respeito das experiências religiosas com o Sagrado, isto é, está sujeita a suspeita. A hermenêutica da suspeita visa questionar motivações da escrita, “uma vez que todo discurso envolve interesses em uma ordem de coisas cujas raízes não são dadas explicitamente. O texto tanto revela como esconde. O texto possui sempre uma dimensão ideológica, bem como toda interpretação […] As hermenêuticas da suspeita funcionam como procedimentos reveladores daquilo que se dissimula o texto” (JOSGRILBERG, 2012, p.42).
O processo de interpretação de texto é algo que deve ser levado em conta nas igrejas. O Reverendo Luiz Carlos Ramos disse uma vez que é necessário uma leitura honesta das Escrituras. O que seria essa leitura honesta? Uma leitura que leva em conta todos os aspectos da crítica literária, histórica, cultural, entre outros inúmeros fatores do texto. O pensador Paul Ricoeur dizia que “a análise do discurso religioso não deve começar com o nível da afirmação teológica” (2008, p.86) mas abranger todo o aspecto dos gêneros literários , dos níveis de discurso, para que sejam neutralizados para que aí sim se possa extrair algo de teológico neles (RICOEUR, 2008, p.85). É interessante que muitos daqueles que destilam ódio e intolerância pelas redes sociais já possuem essas ferramentas para a análise de texto, porém, as ferramentas não significam nada. O olhar é o que determina a imagem. O olhar é um ato de escolha e um ato político. Olhamos o que nos é conveniente, e por mais que tenhamos inúmeras ferramentas, escolhemos fechar os olhos para o que os textos dizem. Se escolhe dizer que a Bíblia é revelada e que por isso as palavras são imutáveis e devem ser levadas na literalidade. Entretanto, é necessário relembrar que na própria Escritura os discursos sobre a divindade são diversos e com diferentes significados que “a noção de revelação não poderá mais ser formulada em uma forma monótona e uniforme que pressupomos quando falamos da relevação bíblica” (RICOEUR, 2008, p. 87), e assim se chegará à conclusão que a revelação é polissêmica e polifônica.
Os místicos estavam corretos sobre as imagens de Deus: devem ser eliminadas. As imagens de Deus, na verdade, são imagens de si próprio. Por isso o Mestre Eckhart orava: “Deus, livrai-me de Ti”.Quem se apega as imagens que tem de Deus não está disposto a realmente experimentá-lo. Experimentá-lo como evento que transforma a existência, porém, sem realmente saber o porquê. Quem se apega as palavras sobre Deus não tem tempo para contemplá-lo no cotidiano da vida, nas coisas simples, nos pequenos milagres diários. Quem sabe além das imagens de Deus não devamos abandonar a palavra Deus também.
Deus: palavra polissêmica – cheia de sentidos, cheiros, sabores ; palavra polifônica – cheia de sons, melodias, silêncios. Porém, esse Deus “morre logo que se converte num acessório cultural ou num ideal humano” (VAHANIAN, 1968, p.195). A teóloga Ivone Gebara escreve em seu artigo “Deus uma palavra escorregadia…” o seguinte parágrafo
“E se não usássemos a palavra DEUS? Se a deixássemos descansar para recuperar sua força e vitalidade? Se apagássemos ou colocássemos entre parêntesis, ao menos provisoriamente essa palavra dos dicionários e da linguagem cotidiana, sobretudo da política partidária? E, se não achássemos mais que as igrejas e suas autoridades públicas tivessem o privilégio maior e a verdade mais profunda em relação ao “conhecimento de Deus”? E se tentássemos entender o que uns e outros querem dizer quando empregam essa escorregadia palavra? Sim escorregadia palavra porque portadora de escorregadios significados. Escorregadia visto que parece ter um só significado, mas é multidão. Multidão de significados para os que a utilizam e para os que calam sobre ela. Escorregadia porque nos conduz a um terreno movediço que nos faz cair em contradições contínuas frente a frágil realidade que somos e que vivemos.” (GEBARA, 2016)
O discurso da violência prevalece quando tentamos definir Deus segundo nossa imagem e semelhança e utilizamos esse “poder metafísico-sobrenatural” para obter nossos próprios benefícios, sejam eles pessoais ou da comunidade de fé. Talvez a tarefa da teologia seja aprender a se despir da própria ideia de THEOS LOGIA. Quanto mais a teologia se fecha em si mesma, mais ela reproduz a cultura de exclusão e violência. Pode ser que ao invés das igrejas discursarem sobre Deus e sobre como as pessoas devem se relacionar com ele, elas devessem simplesmente deixar o curso do rio fluir naturalmente, sem dis(viar-o)curso.
Discurso-teologia da caridade e paz
Para ser possível abandonar um discurso teológico da violência o cristianismo deve se libertar do seu caráter fundamentalista e idólatra da Bíblia. Existem diversas leituras da Bíblia, mas em suma podem ser divididas em duas: as que promovem vida e comunhão e as que promovem morte e divisão. O filósofo Gianni Vattimo propõe a leitura da caridade, inspirada pelo teólogo medieval Gioacchino da Fiore. Para o filósofo “a única coisa que conta é a caridade; de fato, somente a caridade constituiu o limite e o critério da interpretação espiritual da Escritura” (VATTIMO, 2004, p. 66).
A leitura da caridade, ou espírito, é a leitura que permite as múltiplas vozes interpretativas. Uma leitura que promove libertação dos discursos de ódio, violência, opressão e intolerância. Não é possível falar hoje de teologia, cristianismo no singular, mas sim de teologias e cristianismos. E a pluralidade da leitura permite a abertura do Jesus das amarras da fria teologia fundamentalista.
Harvey Cox, teólogo estadunidense, dizia que a Igreja deve ser a vanguarda de Deus, porém só conseguirá tal proeza se der continuidade com a missão histórica de Jesus. E coloca uma função quádrupla da Igreja:
- Kerigma: “A Igreja há de proclamar a liberdade e a adultez do homem que recebeu de Deus a responsabilidade do mundo”.
- Diakonia: “A Igreja há de conceber a sua missão como serviço ao homem no tratamento de todas as suas feridas e fraturas individuais e coletivas”
- Koinonia: “A Igreja há de ajudar a criar a comunidade entre os homens, colaborando com todos os movimentos que se esforçam por caminhar para uma meta nova e melhor da história.”
- Exorcismo: “A Igreja há de se assumir a tarefa de tirar da humanidade atual os maus “demônios” que a possuem no campo do trabalho e da cultura.”(COLOMER, 1972, p. 149)
Atualmente a leitura predominante das igrejas é a leitura do vale de ossos secos. A sequidão espiritual, mística e poética do cristianismo leva à uma religião idólatra, mesquinha, consumista, violenta e fundamentalista. A superação do discurso e teologia da violência viria se houvesse a compreensão de que os ensinamentos do cristianismo não estão focados na busca no deus-metafísico, mas sim na busca pelo seu próximo, no deus-que-se-fez-próximo. Jesus se fez ossos, nervos, carne, pele. A igreja, da mesma forma, deve se tornar ossos, nervos, carne e pele. Quando a Igreja cumpre suas funções para com a sociedade na luta por justiça, igualdade, tolerância, paz, ela se torna a Igreja de Jesus.
“A unidade da igreja de Jesus acontece e perpassa a busca pela unidade da totalidade social (ossos, nervos, carne, pele) organicamente a serviço da vida, disposta a reinventar novas formas de poder e novas formas de ser igreja.” (CARDOSO)
Bibliografia
CAPUTO, J. D. Truth: philosophy in transit (eBook). London: Penguin, 2013
COLOMER, S. J., Eusebi, A morte de Deus, Tavares Martins, Porto, 1972.
GEBARA, Ivone. Deus uma palavra escorregadia… Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/555932-deus-uma-palavra-escorregadia > Acesso em <04 de jan de 2017 >
JOSGRILBERG, Rui de Souza. Hermenêutica fenomenológica e a tematização do sagrado. In NOGUEIRA, Paulo. Linguagens da religião – desafios, métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.
MENEZES, Jonathan. Da tolerância à caridade: sobre religião, laicidade e pluralismo na atualidade. Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol. 28, no 208 55, p. 189-209, janeiro-junho 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/eh/v28n55/0103-2186-eh-28-55-0189.pdf> Acesso em < 04 de jan de 2017 >
PEREIRA, Nancy Cardoso. Superar a Violência! Por uma Cultura de Paz! Missão ecumênica, inter-religiosa e inter-cultural. Disponível em < https://www.academia.edu/5696960/Superar_a_Viol%C3%AAncia_Por_uma_Cultura_de_Paz_ > Acesso em < 05 de jan de 2017 >
RICOEUR, Paul. Ensaios sobre a interpretação bíblica. São Paulo: Fonte editorial, 2008
RIVERA, Dario. Sentidos das linguagens religiosas: perspectivas sociológicas. In NOGUEIRA, Paulo. Religião e linguagem: abordagens teóricas interdisciplinares. São Paulo: Paulus, 2015
VAHANIAN, Gabriel. La muerte di Dios: La cultura de nuestra época poscristiana. Barcelona: 1968.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Rio de Janeiro: Record, 2004.
(E diálogos com Felipe Rocha e Adair Neto acerca do tema)
- Angelica Tostes é teóloga, mestranda em Ciências da Religião, membro do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária e REJU, envolvida em questões de diálogo inter-religioso e teologia feminista.
E-mail: angelicatostes@gmail.com. - Fonte: https://angeliquisses.wordpress.com/2017/01/06/a-teologia-da-violencia/